quinta-feira, 19 de novembro de 2009

UM FESTIVAL QUE DEU CERTO















Ontem foi apenas o segundo dia, mas já estou saudando os realizadores do II São Luís Baixo Festival Internacional que foi considerado por Celso Pixinga como o melhor festival de baixo do Brasil. O festival ocorre em São Luis de 16 a 19 de novembro. A entrada é franca nos shows e há uma pequena taxa no master class.
Com produção de Silas Duarte em parceria com a revista Baixo Brasil, o festival cumpre seu objetivo ao reunir grande número de jovens contrabaixistas de todo o País, revelando novos talentos, disseminando a troca de conhecimentos, além da aprendizagem de outros.
Outro resultado direto é que ajuda a mudar a forma de encarar a carreira musical por estes jovens artistas, aumentando-lhes inclusive o grau de profissionalismo e apuro técnico e, é claro também que um evento deste porte tem reflexo ao longo prazo na formação de maior platéia para a música instrumental, o que é mais que louvável, quando se considera o ínfimo espaço que a mídia convencional oferece para divulgação do trabalho dos músicos no Brasil.
Coube a Arthur Maia abrir o festival, ainda no dia 16, com show magistral no teatro o Artur Azevedo para um público entusiasmado. O baixista nos brindou com sua apurada técnica; foi uma apresentação muito alegre e contagiante. Podia-se perceber a satisfação de Maia por estar no festival e em sintonia com o público. Entre outros, fez um tema de Jamil Jones que me deixou com a melodia da música até agora.
A estrutura do evento conta a realização de master class pelas manhãs e shows noturnos; e estão presente artistas do quilate de Arthur Maia, Adriano Giffone, Celso Pixinga (também idealizador do projeto que ocorre em várias cidades brasileiras) e, especialmente na edição de São Luis, com os mestres da Universidade de Berklee e do Bass Institute of Technology, de Los Angeles, os maravilhosos musicistas norte americanos Jim Stinnett, Grant Stinnett e Todd Johnson.
Aliás, a apresentação deles foi de tirar o fôlego. Um jazz primoroso, envolvente na beleza da execução e na comunicação com o público. Jim Stinnett é jazz com corpo todo e parece sempre está feliz no palco. Ontem (18) quem se juntou ao trio foi o baterista maranhense Isaias Alves que atuou de forma sublime. Para nós não foi nenhuma novidade, mas o fato é que Jim Stinnett o elogiou por ser um grande baterista de jazz. Quem sabe venha uma bolsa de Berklee por aí. Seria de grande merecimento.
É interessante ouvir essa moçada executando tantos ritmos e gêneros diferentes. Uma hora o baixo é melódico, noutra é harmônico ou percussivo. Não pude frequentar o master class, que iria só como curioso apenas para acompanhar o desenvolvimento do ensino da técnica já que não sou músico.
Mas uma coisa que definitivamente me comoveu foi verificar que todos os dias um público crescente e entusiasmado com a música comparece ao Centro de Convenções Pedro Neiva de Santana para acompanhar o evento. Estimei o público de ontem em 800 pessoas. E o que comove é o fato da platéia ser formada por um grupo de pessoas muito novas. Bem, a galera ali tem, pelo menos a maioria, entre 15 a 25 anos. Todos se envolvendo com a música de uma forma ou de outra. Mal é que não fará.
Porém, infelizmente, há notas tristes a falar: evento todo pronto, passagens já tiradas, compromissos assumidos e apoios e patrocínios acertados. Eis que a Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão dá pra trás e pula fora do barco, deixando Silas na mão. Ou melhor, correndo como louco para salvar o festival. Por que será que é tão difícil conseguir investidores para os eventos de música instrumental por aqui? Pior é quando isso parte da própria Secretaria de Estado a quem deveria mais interessar a promoção da cultura.
Entretanto, mesmo sem poder contar com parte dos impostos que cada um de nós pagou, estou assistindo a um festival rico em generosidade e talento graça ao grande esforço da equipe de produção. Salve Diórgenes Brasil e Mauro Sérgio por ser incansáveis e dedicados ao instrumento que tanto amam. Não se preocupe Silas o festival é a salvação.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A CORDA


Publicado originalmente no livro Coisas de Augusto Pellegrini, o conto A Corda contextualiza os desvãos da vida de seus personagens a partir de um determinado ponto de vista originado em Freud. Vai mais além disso. Usa como mote a abordagem psicanalítica para nos mostrar como tão esquisitos e estranhos nos tornamos e até nos desconhecemos. É quando nos negamos ao perceber que somos capazes de fazer o contrário de nosso ideário. O fracasso é um calço que pesa no calcanhar do sapato e impede a caminhada. Quem se reconhece?!

Por: Augusto Pellegrini

Sigmund falou, e não foi para mim. Escreveu livros, teceu comentários, expôs teses, realizou conferências. Pois bem. Não estive presente a nenhuma, não discuti as suas teses; não li nenhum livro seu. Não comentei seus comentários. Sigmund falou, e não foi para mim. Nem sequer para o Zacarias.

-0-0-0-

A corda.
A corda balança como se na extremidade balançasse um cadáver. Um fio de prumo no prumo, dependurado, preso lá no alto do prédio, passando em frente da janela que é só vidro, no décimo primeiro andar, altura suficiente para um homem sentir as sensações de Ícaro, projetar-se nos ares, voar sem asas.Eis a corda.
A corda balança ao sabor do vento e bate na parede corrugada de concreto ao lado do fio de telefone e do pára-raios, prendidos com grampos.
A corda está arrebentada, criminosamente arrebentada na altura do décimo primeiro andar, mas puxada para baixo pelo peso do morto enquanto vivo, agora pende frouxa até o nono.
E o andaime lá no chão, aos pedaços.

-0-0-0-

Uma das minhas ocupações prediletas é fazer cinema; registrar fatos na máquina e depois colar os pedaços de celulóide, para ver os efeitos.
O dia e a noite passam, os olhos ardem e as costas reclamam, a gente trabalha meio em pé e meio sentado, só pelo prazer de ver a coisa chegar a um fim, montando filmes sem cessar e sem cansar o espírito, é só não se concentrar no mundo profano que nos cerca – os bares repletos e a alegria nas ruas – senão saio correndo do laboratório, paletó nas mãos e cheirando a tetracloreto, enjoando o fígado do ascensorista, e vem a desconfiança de não ter dado a atenção devida à namorada que espera.
Arte é arte.
Estava assim absorto nas minhas artes quando surgiu Zacarias, de tez escura, magro e alto, de cavanhaque e sotaque, a preocupação juncando a testa e o pavor ondulando os músculos da face. Tivesse eu uma filmadora às mãos e descarregaria toda a sua corda sobre o seu semblante, para alguma coisa iria servir algum dia, com certeza.
- Olá, professor! Foi ele dizendo para introduzir a conversa. Eu introduzia o negativo no editor. Ele não prestava atenção.
- Olá, Mestre Zacarias! – respondi eu. Este tratamento nos era familiar.
Sua silhueta com cavanhaque se desenhava numa tela, à minha direita. Suas mãos gesticulavam, nervosas.
- Estou num mato sem cachorro. A polícia anda atrás de mim.
Estava suando.
O que queria ele que eu fizesse, que o escondesse? Que declarasse em praça pública conhecê-lo e dar fé jurada que era inocente? Facilitar sua fuga para o exterior?

Que ele era inocente eu não tinha dúvida, apesar de não saber qual era o crime, apesar de não saber se havia crime. Afinal, a polícia poderia estar atrás dele em busca de um testemunho, ou para encaixá-lo num batalhão de investigadores, ou simplesmente para condecorá-lo. Sim, porque Zacarias merece uma condecoração, mil condecorações. A Cruz de Santo Inácio, a da Ordem das Azáleas ou das Ajácias, ou a do Grande Cã.
- Eu fui pra praia sexta-feira à noite – começa ele a contar.
- A noite estava clara e quente, e eu suarento. Peguei minha roupa de banho e de baixo, apanhei um ônibus e fui pra praia. Não tenho testemunhas, mas estive lá. A praia estava clara e quente, e eu suarento. Era noite, mas mesmo assim tomei banho de mar – você já fez isso? É uma beleza, as ondas estavam altas, a praia deserta e a água vinha molhar até quase o fim da areia, a lua parecia maior, ou era o contraste com o fundo negro do céu. Água de coco gelada, e o cheiro do mar.
- Tudo maravilhoso. Até esqueci do meu apartamento, dos meus livros. Do lado de fora do meu apartamento tem um monte de andaimes, os pintores estão pintando, e tem uma corda que passa bem em frente a minha janela. Uma corda grossa, cheia de nós, para segurar a madeira e o pintor sentado nela.
- Pois bem, comigo mora aquele paraguaio, ou boliviano, eu nem sei direito, aquele que pinta quadros de fetos carecas, o Jeremias, incapaz de fazer mal a uma mosca. Ele também não estava em casa na sexta-feira à noite, foi se encontrar com uma mulher, foram para uma boate, e ele voltou só de manhã cedo, cansado demais para ficar acordado, e dormiu.
- O outro rapaz que tem a chave do apartamento disse que chegou lá por volta das onze da noite e saiu antes de o Jeremias chegar, acompanhado, é claro, e não sabe de nada. Disse que não iria se preocupar com coisa alguma, dada a categoria da mulher que estava com ele. Só vendo pra crer.

Até aqui eu não tinha entendido coisa alguma sobre a perseguição da polícia. Ninguém pode ser perseguido pela lei só por morar em um apartamento que tem livros do chão até o teto, livros no guarda-roupa e no banheiro, livros em cima da cama, quadros com figuras folclóricas, cartazes de cinema e de teatro, bonecos de barro, retratos de mulheres nuas de frente e de costas espalhados por toda a parede e rolos de filmes, mesmo com um boliviano, ou paraguaio, amigos de chave, e muito menos ou principalmente por ter uma corda dançando em frente à janela.
- Estou ficando maluco. Cada vez que acordo, olho a corda e escuto a polícia batendo na minha porta e me levando aos berros pelo corredor cheio de eco e me atirando num elevador e numa cela, e ditando a minha sentença.
- Cortaram a corda, professor, cortaram a corda com canivete ou tesoura, bem na cara da minha janela!” Agora eu compreendia. Cortaram a corda. E daí?
Põe outra corda no lugar, paga o prejuízo para os pintores e uma cerveja para o zelador, faz uma festinha de comemoração e convida o Jeremias e o amigo da chave com duas ou três mulheres extras, e deixa o uísque com água de coco rolar sobre os livros de direito e sobre as barrigas lisas.
- Naquela tarde eu estava fotografando uma modelo lá no apartamento. Aquelas poses para publicar em jornal vagabundo, a perna levantada, a saia arregaçada e a blusa desabotoada, você sabe.
Eu sei.
- De repente, a corda se distendeu mais do que devia e depois afrouxou. Ao mesmo tempo ouvi um grito, parecia o som de uma sirene, que foi sumindo e terminou com o barulho de telhas quebradas. Não tive coragem de olhar. A câmera tremia, o tripé tremia, o prédio tremia. A modelo abotoou a blusa, ajeitou a saia, se debruçou na janela e viu o corpo torcido no telhado cinza, lá em baixo, esborrachado como um tomate.
- Agora eu compreendo. Mas você não precisa ter medo, pois estava na praia, naquela lua grande, no coco verde, na areia molhada, se divertindo no calor da noite, enquanto alguém cortava a corda.

- A perícia foi quem descobriu que a corda estava cortada. Também, estava de um jeito que não precisava ser perito pra ver. Não sei, não sei, estou apavorado. Acordo todos os dias e vejo a corda balançando, acenando para mim, me convidando para um passeio pelos ares. É um entra e sai de policiais o dia inteiro. Vou acabar ficando louco. O Jeremias jura que não foi ele, tem certeza que não foi ele, pois ele não abre a janela à noite, porque tem frio. (Mas era quase manhã, e o calor está medonho...).

- Tengo frio, y en este piso hace aire demás. No vi cuerda ninguna. No uso navaja. Y, además de eso, estava borracho, era madrugada, era sábado.
“?Que me importan las cuerdas?
- O zelador me olha com olhos de inquisição. Eu já nem tenho certeza do que se passou. O Jeremias eu sei que não foi – ‘la Libertad no consiste en hacer lo que se quiere, sinó en hacer lo que se debe, decia Campoamor’ – Jeremias vive usando frases feitas e convenceu até as paredes de que é inocente.

- O outro rapaz, o da chave, diz que nunca pediu para ter chave alguma, que foi oferta da casa, e que não iria complicar a vida de ninguém – muito menos a dele – além de outras justificativas cheias de lógica. Resta a mulher, talvez ela tivesse se levantado sorrateiramente e cortado a corda enquanto ele dormia placidamente; mas por qual razão haveria ela de cortar a corda, assim sem mais nem menos?
Estou impressionado com a narrativa do Zacarias. Ele sai – “adeus, professor!” – (será que vai se suicidar?) com uma gravura debaixo do braço, os ombros balançando de um lado para o outro, o cavanhaque suado e a porta batendo à sua partida.
Volto então aos meus filmes, e a corda agora balança na minha mente. Não tenho nada a ver com o acidente, com o incidente, mas Jeremias tem os seus bons motivos, não pode se complicar ou é deportado, encaixotado e carimbado como um amontoado de arenques – este lado para cima. O outro da chave pode jogá-la num abismo ou num rio, há tantos rios por aí cheios de lodo, quem é que iria procurar uma chave nos intestinos de um rio canalizado? Se bem que o sumiço da chave não prova nada, existe a também a mulher, que bem poderia ter sumido com uma daquelas estatuetas raras que ficam naquelas estantes povoadas de livros – metafísica, dialética, dietética – e vai ver que sumiu mesmo.
É mais fácil achar uma chave no fundo lodoso de um rio do que notar a falta de um elefante naquele apartamento, principalmente se for de marfim. O zelador não iria escalar a lateral do prédio e ficar com as unhas esfoladas, nem subir pela corda e ficar com a palma das mãos pior que as de Cristo depois que lhe pregaram os pregos, para cortar a corda na altura do décimo primeiro andar e correr o risco de cair com ela – subiria no máximo subiria até o quinto – e o pintor, se quisesse se suicidar, tomaria um balde e meio de verniz e teria uma disenteria de envenenar o mundo antes de dar a sua última contorção.
Agora abandono os filmes de vez e acendo a luz fluorescente que fica no teto sobre a minha cabeça. Arrasto o banco para trás e cerro os olhos. Já faz muito tempo, muitas horas, que estou trancado aqui neste estúdio, sem comer e sem dormir. Isto não é uma cela, nem internato, o que estou fazendo aqui que não vou embora?

Já nem sei o que tenho feito, ao certo, os dias e o calendário já perderam o significado e o sentido.
Ponho a mão no bolso – o que é isto!?
É uma chave.
Vejamos – minha não é, pois a minha é verde. A do estúdio também não, que se fecha com cadeado. Também não é chave de carro, e eu não tenho carro. Lembro-me com clareza que esta chave me foi dada pelo Zacarias, faz mais de um mês. Eu havia deixado um álbum de músicas clássicas sobre a sua cama, e temi que se transformasse em pedestal para uma pilha de livros, então ele me deu a chave para eu ir buscá-lo. Mas... então eu também possuo a chave do apartamento! E ela queima a minha mão como um talismã do inferno.
A corda.

Zacarias não foi, estava na praia. Jeremias não foi – que lhe importam as cordas? O amigo não foi, vai jogar fora a chave, e assim perder a oportunidade de novas aventuras. A mulher prefere roubar elefantes, e a modelo cuida mais de fotografar semi-nua. O zelador não tem mais idade para ser alpinista, e o pintor morreu como um tomate.

Só restamos nós, eu e a chave.
Já nem tenho certeza de que fechei a torneira ontem, ao sair de casa. Já nem sei se foi ontem. Fecho outra vez os olhos e nem sei a cor da minha camisa, e se ainda sei que estou de camisa é porque me apalpo e a sinto. E a namorada – estará pacientemente me esperando em alguma parte do mundo?

Como posso ter certeza de que não fui eu quem cortou a corda, deslizando como um réptil em direção àquela janela?
Estou começando a sentir enjôo, gravidez é claro que não é, nem maresia. É medo.

Mestre Zacarias me transmitiu todo o seu pavor e toda a sua lógica ilógica.
O que é que eu andei fazendo por aí, se ainda estou com a tesoura entre os dedos? Cortando filmes ou cortando cordas? Escapando da polícia, trancado aqui neste quarto?

Terei sido eu?


-0-0-0-


Sigmund falou sobre isso, e não foi pra mim. Talvez para estes loucos, que me rodeiam.

Será que previu algum dos meus dias?