Pensou por um momento como se fossem dias. Já estava tudo definido e tão certo. Foi quando andava a esmo por quaisquer ruas, esbarrando em busca de uma a memória tardia que não valorizava mais. Vivera há muitos, arrastando-se por tantos lugares e por anos a fio e ainda agora, deixando atrás de si apenas marcas de seus passos, que logo eram devorados pelo vento que lhe gelava as carnes e a alma. Não se importava mais com as coisas, os cheiros, os gostos, os jeitos e rostos emaranhados na confusão de seus pensamentos. Tudo lhe parecia sem sentido. Era como que se na vida não tivesse havido momentos determinantes, ou tudo que houvesse vivenciado até então, agora, descobrisse ter-lhe fugido com a velocidade de um estalar de dedos: zap! vulpt! Para, no instante seguinte, reafirmar que o tempo não voltava mais como as marcas de seus passos agora definitivamente enterrados e esquecidos pelo tempo.
Sentiu medo, um frio na barriga e um enorme estranhamento de gelar a espinha, pois desconhecia tudo e só com muita força lembrava os amigos, namoradas, pais e seu mais adorado cão. Pediu pra si mesmo paz e saiu gritando até ficar adormecido e inerte, torcendo para ser esquecido. Achou que tinha enlouquecido; ou seria ele que talvez houvesse esvanecido sem saber?
Por via das dúvidas e sem querer confrontar o tempo, passou a viver com a não-memória. Decidiu que só o presente imediato, o átimo, as relações do instante é que seriam bem-vindas, já que desconfiava que não pudesse chamá-los de vividas. Ajustou, assim, que os momentos fossem rápidos como piscar de olhos. Melhor assim, posto que não criavam vínculos, nem expectativas e tão-pouco obrigações, as quais detestava. Agora sua vida era uma “quase não experiência”. Não se importava. Afinal, por que deveria viver com coerência? Já não precisava mais se justificar e isso era em si uma grande vitória. Mas havia inconvenientes nesse procedimento; não conseguia conversar longamente com ninguém, o que lhe impunha conhecer e esquecer logo em seguida um monte de gente que depois lhes fugiam os nomes. Especializou-se em truques para disfarçar e lembrar nomes no meio dos papos. Às vezes só alongava as sílabas ou fonemas das palavras, quando era salvo da situação por alguém do lado que sem perceber lhe dizia o nome do interlocutor. Descobriu, assim, um lado útil das pessoas. Foi um fascínio para ele, algo de se gabar. Agora sim o veriam como importante e muito sábio, sem saber que na verdade aquilo era produto de sua desmemoria. Alguém muito útil para os dias que se vivem hoje. Muito útil aos outros e a si próprio. Agora que o sabia não ficaria pedra sobre pedra, sua vingança estava urdida e desenhada.
4 comentários:
Excelente!!!
Senti um entreleçamento machadiano de "Memória Póstumas de Brás Cubas" com Murilo Rubião em "O Mágico da Taberna Minhota". Mas com estilo próprio. Regado a jazz.
Abraços
O personagem do conto, ou o próprio estrategista, só, sozinho, no meio de um mundo que nesse momento não era o seu: vivia assim, sem sentido algum que lhe impressionasse. Ficaram a visão, o tato, o senso de direção, mas faltou-lhe o discernimento para ponderar entre isso ou aquilo, entre A e B. Sua situação foi piorando ao vivenciar a não-memória, depois de já ter “pensado” por um tempo, incerto, e que naturalmente não o levara a lugar algum. Ele apenas constatou o obvio: cá estou perdido entre coisas e sensações das quais não me lembro, não recordo, não sinto. Assim, segue seu rumo o estrategista: aqui, ali, acolá sem saber por que nem pra que.
Enfim, num falso momento de lucidez, resolve dar a volta por cima daquela situação: usar a linguagem como meio de fuga e identidade o qual ele já perdera. Jogar com as palavras seria a solução para que sua não-memoria e sua “quase não experiência” não fossem notadas.
Na obra A Misteriosa Chama da Rainha Loana (2004), o autor, Umberto Eco, retrata um personagem que perde a memória, mas aos poucos vivencia o que perdera através de imagens e quadros de uma determinada época da cultura européia.
Portanto, ambos personagens utilizam de algum artificio para recuperar a memória, ou não seria a memória coletiva de um povo ou de uma nação que não sabe a direção exata? Falta-lhe bússola confiável? Falta um líder timoneiro para guiar a embarcação às águas tranqüilas, como diria o salmista...São indagações com pitadas de respostas que nos perseguem em várias situações da vida.
O estrategista pode sinalizar que nos momentos de dúvidas, o melhor é usar a linguagem, a palavra de modo a expressar nossos desejos de mudança e busca por melhores dias para nós e para os vindouros.
É só, mas tem muito mais.
O que mais dizer, se o Júlio já disse tudo? Além de músico o cara é um literato.
Pois é compadre, mais um perplexo nesse mundo de perplexidade, pagando a conta do analista prá nunca mais saber quem é!
Abração.
Grande Erico, suas palavras são generosas, agradeço de coração. Por um momento resolvi exercitar o uso da palavra escrita como a expressão que mais se aproxima do pensamento humano. Assim que que eu ler outros textos postarei aqui os comentários.
grande abraço!!!
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