sábado, 20 de novembro de 2010

AD LIBITUM - UM POUCO SOBRE O IMPROVISO NO JAZZ


Esse artigo foi originariamente publicado na Revista Continuum, do Itaú Cultural, em julho de 2007. Achamos interessante a forma objetiva e direta com que trata o tema o autor, muito além dos empolamentos com que o tema é tratado usualmente por especialistas. Por essa razão o republicamos no Soblonicas. Espero que gostem.




Por Thiago Rosenberg

O jazz é uma jam session entre o passado e o presente. Dois tempos em harmonia, dois tempos num constante diálogo musical. O passado na partitura, no tema, na melodia que, previamente composta, serve de base para a música; e o presente no improviso que o artista aplica sobre esse tema. Fixadas no passado, as notas musicais são reorganizadas, remodeladas no improviso do presente. O palco é para o jazzista, portanto, como que uma via de mão dupla entre o antes e o agora, entre o momento de composição do tema e o momento de execução da obra. Piano, guitarra, baixo, bateria, metais, palhetas. Todos os instrumentos afinados para uma viagem sonora no tempo.

Não foi o jazz que introduziu o improviso na música. O jornalista e saxofonista Roberto Muggiati, autor de, entre outros, Jazz: Uma História em Quatro Tempos e New Jazz: De Volta Para o Futuro, lembra que, bem antes do desenvolvimento do jazz, grandes mestres da música clássica já abriam espaço em suas composições para trechos improvisados usando a notação musical ad lib, do latim ad libitum - "ao prazer", ou "à vontade", em português. "Mas o improviso na música clássica era esporádico e praticamente deixou de existir depois da era romântica", diz. "Já no jazz, foi um dos recursos mais usados, e de diversas maneiras - da improvisação coletiva de Nova Orleans à improvisação sobre a melodia, na fase intermediária do suingue; da improvisação sobre os acordes, no bebop, à total abolição de regras, no free jazz."

De acordo com Mario Jorge Jacques, autor do Glossário do Jazz, a semente do improviso jazzístico - bem como o próprio jazz - vem do blues. Mais especificamente do break, procedimento do blues clássico que determina uma pausa na melodia, a ser preenchida por um solo do instrumentista que acompanha o cantor. É quando o músico deixa transparecer, por meio do instrumento, sua voz, seus pensamentos, sua alma. Como diz Edo Callia, pianista da Traditional Jazz Band, "o músico que improvisa precisa de uma boa dose de coragem, pois coloca sua alma no tema, e um pequeno erro pode ser fatal".

O improviso é uma obrigação no jazz?
Essa é uma questão polêmica. As big bands, ou grandes conjuntos de jazz, por exemplo, muitas vezes abrem mão do improviso e, tal como uma orquestra sinfônica, se concentram mais no trabalho do compositor ou do arranjador. O que não impede os músicos de se destacarem individualmente. Como afirma Muggiati: "Numa interpretação clássica, o fagotista, o flautista e até o violino solista são ilustres anônimos. Mil fagotistas tocarão o mesmo trecho da mesma maneira. Numa orquestração de jazz, mesmo sem improviso, sabemos que o trompete que ouvimos é de Clark Terry, o saxofone de Phil Woods, o trombone de J.J. Johnson, e assim por diante. Cada músico de jazz possui uma voz própria".

Autor de Jazz - Das Raízes ao Pós-Bop, Augusto Pellegrini defende a idéia de que "não existe jazz sem que exista pelo menos algum nível de improvisação. Isto porque o próprio jazz nasce de uma música que não era transcrita em partituras".

Jacques acrescenta que o improviso no jazz é muitas vezes mal interpretado. "Não é simplesmente uma invenção momentânea e repentista", comenta. "Seu sentido é muito mais amplo e significa a liberdade de criação e de interpretação do músico. O jazzista improvisa frases que podem até ser criadas no momento, mas geralmente são organizadas e trabalhadas a priori. Por vezes apenas algumas ornamentações são introduzidas."

Liberdade é a palavra-chave. Há no jazz liberdade para improvisar; liberdade para se expressar; liberdade de viajar no tempo, de saltar do presente para o passado e do passado para o presente. Liberdade de, ad libitum, mudar o passado com as notas do presente.

2 comentários:

APÓSTOLO disse...

THIAGO é, realmente, grande profissional de "comunicação".
Artigo muito bem escrito, baseado em fontes de primeira e em mais que correto alinhavo, tão ao estilo dele.
Tive o prazer de mini-colaborar com ele em documentário para sua formatura, que produziu em DVD: um senhor trabalho.

Érico Cordeiro disse...

E nós tivemos o prazer de assistir a parte desse documentário lá na Toca do jazz da Paulista!
Um ótimo texto, com uma pesquisa muito profunda, citando os meus amigos Augusto Pelegrinni e Mario Jorge jacques. Só faltou citar o Converso que ouvi :-)
Compadre, não mande a olícia atrás de mim, ok?
Abração!