sábado, 25 de julho de 2009

ELEONORA E ALBERTA


Billie Holiday fez cinquenta anos de falecida e, claro, seus encantos e talentos foram decantados em inúmeras matérias na internet. Recebi email de Augusto Pellegrini com o conto Eleonora e Alberta que foi publicado no seu livro O Fantasma da FM (1992).


O autor está revisando os contos e pretende reeditar o livro brevemente. Já o havia lido e por possuir vários outros bons contos é uma leitura recomendada. Desejando partilhar sua leitura com nossos leitores, solicitei autorização a Augusto para postar o conto que prontamente concordou.

Ei-lo. Espero que gostem!




Eleonora e Alberta


Por Augusto Pellegrini



Quando Eleonora nasceu, nos idos de mil novecentos e quinze, em um cortiço mal-cheiroso de Baltimore, sujo e negro como todos os cortiços do mundo, afagada pelo vento do mar e pelo cheiro forte de peixe – o peixe colocado nos caixotes com gelo e as vísceras cobertas por moscas azuis se entulhando junto ao lixo da baía de Chesapeake – Alberta já era uma graciosa jovem.
Alberta era dona de uma simpatia irradiante que sempre a acompanhou ao longo da vida, embora nunca tenha sido bonita. Tinha o rosto comprido e os olhos maliciosos, o cabelo crespo preso atrás da nuca e os gestos bruscos, e parecia bem mais jovem na simiesca figura dos seus já vinte anos.
Eleonora chorava vagidos de melancolia usando a máscara do desencanto e da desilusão que seria o seu rictus perene, encolhida nos braços pouco espertos e mal-costumados de uma mãe de pouco mais de treze anos de idade. Ela havia sido expulsa de casa com a severidade vitoriana do pai inconformado e da mãe indignada – afinal, se perder assim vá lá, tantas são as mocinhas que tropeçam no umbral da existência, mas não com um músico semi-analfabeto, um miserável desempregado que, além de tudo, era negro!. Se pelo menos tivesse “errado”, mas com o filho de um comerciante, ainda poderiam sobrar uns dólares de prata para consertar o mal-feito...
A mãe de Eleonora, inexperiente e confusa, havia conseguido um emprego de ajudante na casa grande de um burguês de classe média alta e fazia os seus deveres como se a Guerra de Secessão ou se Abraham Lincoln não tivessem existido, como se os escravos não tivessem sido alforriados e a chibata ainda cantasse vergalhando os dorsos cor de pau-de-canela.
Enquanto Eleonora chorava e sua mãe lustrava a bandeja de prata que chegara da Inglaterra no bojo do Mayflower, Alberta exibia seus dotes artísticos e exercitava o seu canto em alguns dos chamados cafés e casas noturnas de uma Chicago que começava a aprender as manhas da violência com a influência siciliana da mão negra, a “cosa nostra”.
Eleonora Fagan, com seu nome de foto-novela, estava começando naquele instante uma vida mais voltada para o último ato de uma ópera do que para o último capítulo de uma história de amor, mais para tragédia grega do que para comédia francesa, mais para heroína de injetar na veia do que para heroína de folhetim, uma vida ao mesmo tempo predestinada ao sucesso e ao insucesso.
Já Alberta, com seu nome de nobreza, se constituía numa rainha da noite, compondo e cantando músicas e sendo cortejada pelo blues, mesmo sem esquecer o seu passado, a infância precária na Memphis racista, os atentados da Ku Klux Klan, a falta de oportunidades e o ingresso na marginalidade precoce sob o olhar do xerife ruivo, gordo, intolerante .e beberrão
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No ano de mil oitocentos e noventa e cinco, tanto na poeira de Memphis como em qualquer outro lugar dos Estados Unidos, a vida não era fácil para camareiros de trens e de bordéis, principalmente se fossem negros, representando uma constante e monótona troca de lençóis e fronhas sujos pelos freqüentadores de curta duração e pouco banho, e pelos passageiros de longo percurso, repletos de parasitas, coceiras alérgicas e sífilis, percevejos à parte.
A mãe de Alberta era camareira de bordel, e seu pai um camareiro de trem.
Educar uma menina dentro do ambiente alegre, mas libertino, era uma tarefa complicada para uma mãe que não desejasse ver a filha envolvida com algum soldado de passagem ou com o próprio garçom ao final da noitada.
Assim, quase que estimulada pela própria mãe, que lhe entregou alguns poucos dólares disponíveis no momento, Alberta colocou seus parcos trapos numa maleta que tomou emprestada a uma daquelas mulheres que a sua mãe já lhe proibira de conversar, dependurou nas orelhas um par de argolas douradas e se pôs na estrada antes mesmo de completar oito anos, arrastando seu chinelo rumo ao desconhecido, evitando embarcar no trem onde o pai estava naquele exato momento apanhando as botinas de um próspero mercador de remédios para lhes dar uma demão de graxa.
Alberta chegou à poeirenta Chicago e foi esfregar o chão de um botequim qualquer enquanto ouvia interessada as cantoras da moda cantarem os seus blues e spirituals.
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Quando Eleonora nasceu, e abriu os olhos para o mundo por quem seria devorada pouco a pouco, Alberta jê era perita em alta malandragem, sentando-se no colo daqueles bêbados enlevados com a sua juventude e candura, beijando-lhes a boca sôfrega sabendo a cigarro e Bourbon, beliscando-lhes o lóbulo da orelha numa malícia insuspeita pela sua pouca idade e correndo as unhas pelo peito suado e cabeludo ao mesmo tempo em que tirava as mãos grosseiras e impertinentes que cismavam em se insinuar por onde não deviam. Nesse pega e tira, empurra e põe, afaga e esfrega, lá se ia de embrulho a carteira com o dinheiro do idiota que acabava depois enxotado do bar a ponta-pés por não ter como pagar a conta, atirado à rua por um leão de chácara de dois metros de altura e a cabeça enfiada nos ombros, campeão de boxe do distrito e santo protetor do dono da espelunca e das imaculadas mocinhas lanceiras.
Alberta então se recompunha, abotoava o vestido e ria o riso dos inocentes, para depois dividir a féria da noite com o leão e com alguma amiga leoa que havia participado do jogo.

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Enquanto isso, papai Clarence, habituado com as rodas boêmias, foi pouco a pouco se afastando de Eleonora e de “mamie”, ambas consideradas por ele como um indesejável estorvo.
Após pensar e repensar os prós e os contras, ele resolveu sumir de vez para tocar a sua guitarra e conquistar novas mulheres, obrigando “mamie” a transferir Eleonora aos cuidados de outra mulher que tinha como entretenimento especial espancar a menina sempre que lhe desse na telha, sob qualquer pretexto – fez ou não fez, quer ou não quer, vai ou na vai, gosta ou não gosta, principalmente quando alguma querela envolvia a filha legítima – e aí então, dá-lhe bordoada, na mais pura e cândida crueldade.
Eleonora fugiu.
Saiu à procura de qualquer coisa que lhe quisesse bem, e achou alguma coisa parecida com amizade na companhia de viciados, gigolôs e algumas vagabundas que faziam o ladro negro da juventude dourada dos anos dourados. Logo vieram a detenção, o interrogatório, as lágrimas, o veredito e a internação na diabólica casa de correção onde não se corrigia coisa alguma, um circo de horrores onde o que mais aprendeu foi odiar a vida.
Os fantasmas apareciam para atormentar o dia-a-dia e as dúvidas vinham lhe povoar os sonhos durante a noite.
Os fatos foram se desenrolando como numa fita cinematográfica. Uma menina caiu do balanço e quebrou o pescoço – morreu quase que instantaneamente com os olhos revirados e os braços se debatendo como uma galinha sacrificada em agonia. Eleonora agredida por outra interna e revidando com um cabo de vassoura, a monitora a acusando de ter feito isso e aquilo (“isso” Eleonora até concordava que fizera, mas “aquilo” ela não tinha feito) e então a chamada a um severo parlatório naquele fim de tarde conturbado.
Como castigo, uma noite trancada ao lado da menina morta, os olhos ainda abertos e revirados e a boca entreaberta como que a pedir clemência. Eleonora em desespero junto com a revolta e o medo tendo a impressão que a morta balbuciava o seu nome falando injúrias e maledicências, e a lembrança longínqua da avó morrendo enquanto a ninava em seus braços, cantarolando canções de adormecer e adormecendo para a eternidade...

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E Alberta continuava cantando.
Alberta cantou como um passarinho. Passou a infância, a mocidade, a idade adulta e o princípio da velhice soltando seus trinados e vivendo humildemente, como bem servia a uma filha de camareiros.
Ela encantou com a sua voz rouca e melodiosa até que, aos sessenta anos, sentiu-se cansada e ansiosa por ajudar as pessoas. Cantar simplesmente não bastava, ela tinha que ser como a formiga, laboriosa e útil. Tornou-se então enfermeira.
Alberta ocultava a sua alma de passarinho entre injeções e curativos, termômetros e drágeas, a sístole-diástole do estetoscópio fazendo as vezes do contrabaixo e ditando o ritmo da vida, a sirene da ambulância sabendo ao sopro de Louis Armstrong, Saint James Infirmary.

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Eleonora saiu do internato, voltou parta o colo da “mamie” e caiu nas graças daquele saxofonista com cara de sono a quem chamou de “Presidente” pelo apoio forte e desinteressado que lhe prestava, o que veio tornar o seu horizonte mais azul.
Ela agora cantava com a sua voz de gata, enquanto o Presidente fazia fluir notas dolentes e preguiçosas do seu instrumento dourado. Ela cantou e encantou, encheu os salões de belos sons, viajou e conheceu a América e, como a cigarra de La Fontaine, cantou como se cada dia fosse o último canto da sua vida.
Teve momentos de glória, teve momentos de angústia, teve uma vida de gardênias e jóias. Teve também problemas causados pela cor – afinal, por que Arthur, aquele judeu maluco, teve a idéia de incluí-la numa orquestra composta apenas por músicos brancos?

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Alberta envelheceu sem fortuna, trajando sua roupa simples, casaco puído e calçados de liquidação, carregando seus pecados junto aos embrulhos e aplicando cataplasmas para minimizar as dores, até que lhe apareceu um príncipe pianista – como nos contos de fada – que convenceu o anjo sapeca com mais de oitenta anos e voltar aos palcos.
Eleonora cresceu em cada canção e em cada casaco de visom, em cada jóia e em cada flor a lhe ornamentar os cabelos nas noites de platéia plena, cada nota musical um contrato milionário. No entanto, na hora da verdade, ela se escondia na bebida e na solidão, nas drogas e nas lembranças do passado.
Eleonora era ainda jovem, quarenta e quatro anos de tragédia e glória, quando foi levada para o hospital e morreu de tudo – álcool, tóxicos, tristeza, desajuste e solidão.
O Presidente chorou.
Alberta morreu como uma flor que nunca foi colhida, quase noventa anos de vida peralta e matreira. Nasceu vinte anos antes de Eleonora e se foi vinte e cinco anos depois.
O pianista fechou a tampa do piano como quem fecha um esquife, em sinal de pesar.

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Eleonora Fagan é o nome de batismo da cantora Billie Holiday. O nome Billie foi inspirado numa obscura atriz do cinema mudo chamada Billie Love e o sobrenome Holiday foi herdado do pai Clarence Holiday, guitarrista de orquestra que na verdade jamais lhe emprestara oficialmente o nome. Fagan era o sobrenome da mãe.
Billie Holiday morreu em julho de 1959 e deixou uma obra imortal.
Alberta é a cantora Alberta Hunter, uma das mais consideradas cantoras de blues e gospel, co-autora de Downhearted Blues, ao lado de Lovie Austin – primeiro e maior sucesso de Bessie Smith, mais de um milhão de cópias vendidas em 1923 – ao lado de Lovie Austin.
Ela morreu em outubro de 1984 e deixou como lembrança a sua voz grave e a sua graciosidade.
O Presidente é Lester Young, para quem Eleonora era simplesmente a “Lady Day”.
Arthur, o judeu, é Artie Shaw, clarinetista, maestro e arranjador, que viria tempos depois a escrever uma obra-prima “Encrencas com Cinderela”.


3 comentários:

Érico Cordeiro disse...

Grande conto - o Augusto também me mandou por e-mail e achei o máximo.
Duas grandes damas, cujo destino era emocionar a todos.
Parabéns ao compadre, por publicar essa gema aqui no Soblônicas, e ao mestre Augusto, por seu texto refinado e límpido.

figbatera disse...

Maravilhoso relato de duas tristes vidas.

Celijon Ramos disse...

Érico e Fig,
Augusto Pellegrini escreveu muito bem sobre as comoventes vidas destas colossas da arte de cantar. Ao ler dá vontade de por logo o disco pra ouvir e se emocionar.

Abraços!