domingo, 11 de outubro de 2009

BOLINHAS DE AÇO


Tinha, naquela hora, ganhado a rua pra comprar jornal na banca de revistas como desculpa para passar o tempo.
Encontrava-se em meio à balbúrdia dos carros que passavam num frenesi de motoristas que se apressavam na volta para a casa como a evitar o engarrafamento do trânsito. Na cabeça só pensamentos esparsos e incertos. Foi quando se deparou de forma surpreendente com uma prosaica esfera de rolamento, suja de graxa espessa e com muita terra ao seu redor. Logo ali aos seus pés estava o objeto que lhe era tão familiar e que lhe abrira, naquele momento, as portas de uma viagem vertiginosa para dentro. Um busca que lhe pareceu estranha.
Depois de tanto tempo ela estava de novo como a reclamar o significado de uma vida e uma grande espera.
Como se o convite fosse feito, ele a recolheu do chão e pôs-se a rir num contentamento que o deixava nervoso. Tratou logo de cuidar da bolinha, limpando-a de cada grão de terra em meio a óleos desgastados com um carinho esmerado. De repente, voltou-lhe a lembrança da infância, quando havia muita luta da criançada nas disputas dos jogos de peteca, pois quem possuísse as maravilhosas bolinhas de aço leva vantagem no jogo. Era na época de chuvas que a brincadeira corria solta e que a algazarra dos meninos se completava num corre-corre de um lado para o outro. Tempo de pés enlameados e de cheiro de terra molhada que naquele momento lhe tomava as narinas novamente. Aquelas bolinhas tinham peso e personalidade; diziam-se de aço e prestavam-se muito bem, ao atingir as petecas de vidro dos adversários, para quebrar-lhes as almas. Tec! E pronto. Uma banda para cada lado era o espólio e o resultado de míticos duelos. Choro peremptório do perdedor ante o riso insolente do dono da peteca de aço. Era difícil encontrar aqueles tesouros de aço e por isso, agora ele sabia, sorrira tanto ao reencontrá-la ali graciosamente depois de tantos tempos e ao alcance de seus olhos. Era como se dali saísse correndo para uma infância que há muito deixara guardada em algum escaninho de quimeras. Tinha novamente trazido pra si a beleza daquela vida de inocência e de generosidade. Resgatou a convivência de amigos que se perderam pelos caminhos. Mas agora não; todos estavam ali juntos mais uma vez para de novo brincar de peteca, contar estórias e correr descalços pelas ruas. Todos na sabedoria da memória que recupera vidas num segundo.
Então tornou a olhar fixamente a esfera agora já limpa nas mãos. Mirou-a mais uma vez e sentiu-se ante a um espelho provocado pelo brilho intenso que reluzia na sua frente. Deixou de ser criança e voltou, pouco a pouco, para seu corpo adulto, alquebrado por tantas idas e vindas próprias a existência de um homem de cenho forte e já maduro. Mas era diferente o riso que mostrava agora entre os dentes.

9 comentários:

Érico Cordeiro disse...

Compadre,
Essa viagem é maravilhosa. Poesia sob a forma de prosa, a evocar doces lembranças!
Parabéns pelo belíssimo texto e um grande beijo para você, para a comadre e para os meninos!!!!

Celijon Ramos disse...

Obrigado meu querido. Penso que muito podemos escrever sobre nossas infâncias. Há tantos papagaios e lancedadas a polvoar nossa existência que o ser adulto anda louco pra pedir socorro a sua criança. Talvez seja um bom tema pra ser desenvolvido, não achas?

Maysa disse...

Caro Celijon

Seu texto é poético,bastante lírico.
A expressão da vivência que, nós adultos, temos sobre a infância é sensível e universal.
Que lindo!
"Era como se dali saísse correndo para uma infância que há muito deixara guardada em algum escaninho de quimeras."

O problema no cotidiano é que vão nos cobrar, sempre, a cisão entre maturidade e infância.
E não precisa!
Hoje, fiz um pedido especial, à minha neta, de 7 anos.
Nunca deixe de ter um pedacinho de você,do seu coração, só para essa criança que v. é!
Talvez ela tenha achado esquisito o pedido mas tenho certeza que gostou!
Um caloroso abraço
Maysa

Celijon Ramos disse...

Ah, Maysa!Que sua netinha guarde na mente e no coração esse pedido e conselho repleto de generosidade. É um tesouro no baú da vida, um presente que você dá a ela. Se não entendeu agora o fará quando adulta e terá viva em si a criança jamais adormecida e sempre presente.
Que bom que gostou de Bolinhas de Aço. Às vezes me pego com esse tipo de lembrança e o objetivo do conto é trazer para os leitores esse reencontro consigo mesmo. Talvez alguns se assustem com distância que o temperamento adulto pasma na vida e morram de saudade da infância. Talves alguns possam se movimentar para se recuperar em criança.
Euzinha de Tânia Maria tem também esse poder para quem é do Maranhão. Ontem me encontrei com o maestro Hilton Assunção. Maranhense, mora há muitos anos no Rio, é quase da mesma geração de Tânia Maria e me agradeceu a oportunidade de poder melhor conhecer a música de Tânia e elogiou muito Euzinha. Para mim, que seu fã, foi muito gratificante. O blog serviu a seu propósito. Ocorreu o mesmo com seu comentário.
Obrigado mesmo!
Um abraço!

Salsa disse...

bolinha de gude ou boleba, eu já conhecia. Peteca é mais uma pro vocabulário. Eu também jogava - na devida época. Pipa, pião, ferrinho (joga-se com um pedaço de vergalhão com ponta afiada - explico as regras em outro momento), bafo (com figurinhas) e por aí vai. Boas lembranças.

Celijon Ramos disse...

Salsa vou querer saber direitinho das regras do jogo de ferrinho, pois creio tratar-se do nosso prosaico jogo de chucho (usávamos para confeccionar o brinqueodo pedaço de areme bem forte, agulhas de crochê,haste de tesourinha e outros mais)e joga-se um contra o outro, em trios, etc no chão molhado pela chuva ou por nós mesmos.
Um abraço!

Salsa disse...

A chuva era necessária para amaciar a terra. Fazíamos um triângulo no chão e arremessávamos o chucho para cravar no chão. Traçávamos uma reta a partir dos vértices e prosseguíamos até errar (o prego não cravar), momento em que o próximo jogador assumia a função de arremesso. Tínhamos que circular em torno do triângulo até chegar novamente na linha por nós traçadas. Objetivava-se cercar o adversário e impedí-lo traçar suas retas. Assim sendo, buscava-se acertar o mais próximo possível da linha traçada (como a fechar uma porteira). A alternativa de fuga era conseguir um "subterrâneo" (jogava-se o chucho inclinado para perfurar sob a linha). Quem "queimasse" a linha do adversário perdia.

Sergio disse...

O texto e a música! Que violinha é essa? Fernando Japona? É por isso q não gosto de ouvir. Ouvir e não ter é muito cruel seu Celijon Ramos. Agora eu quero esse 'casaquinho' do japona...

Abraços! Amigo Celijon, eu me coloquei na lista dos seguidores por motivos óbvios, só q minha fotinho não apareceu... E enquanto te escrevo cá com os meus pobrema, me entra o Oswaldinho No Forró. Depois dizem q sou eu o garimpeiro!

Abraços dobrados!

Celijon Ramos disse...

Sérgio valeu pela visita.
O Fernando Japona é um bom músico daqui de São Luís. Tive o prazer de produzir um show de seu grupo Saint Luis Blues Band no projeto de jazz que produzi. Você poderá conhecer mais acho que no myspace ou é no palcomp3. "Oswaldinho no Forró" está sobre a execução do Nicolas Krassic de quem gosto muito e faz parte de seu último CD Cordestinos. Escrevi no blog um artigo sobre Nícolas em avalio o trabalho do artista.
Ah, ia esquecendo, genial postar a poesia de Paulo Leminski, poeta de quem gosto muito e faz muita falta entre nós
Um abração!