domingo, 22 de março de 2009

A MORTE DE ZÉ COCHICHO


Quando deram a facada fatal, Zé Cochicho fazia frio e logo começou a sair de seu estômago sacripanta um líquido amarelo. Apenas disseram que eram lipídeos, gorduras do que se alimentava pelos últimos dias.
De sobressalto assustei-me. Mas como? Como poderia ser? Gorduras?! Foi um fastio só.
A pergunta voltou de supetão a meus ouvidos. Lembrei do que apontavam ser o tal líquido que derramava de Zé Cochicho. Não poderia ser. Já há três semanas Cochicho não comia, coisa que só o fazia na imaginação quando passava em frente às lanchonetes no centro de São Luís.
Depois do susto sufocador, as coisas voltando ao normal, enquanto Zé Cochicho morria, o líquido pegajoso jorrava fininho, finando. Descobri então que de fato seria aquela poça a grande questão no que se transformara sua patética vida.
Ante a insistência de alguns populares na fixa idéia da gordura, comecei a compreender toda cena pelo cheiro nauseabundo e coloração ocre que não me agradavam. Decerto, aquele líquido era um pouquinho de toda aquela gente que rodeava o corpo inerte na sua insignificância. Morria ali gente muito parecida ao pobre Zé Cochicho.
A gosma era sem dívida o podre da sociedade mesquinha de que Cochicho tanto se orgulhava de pertencer. Pelo fio que escorria podia se notar bem. Ao longo da poça, era visível o último esgar nervoso da mãe que tudo fazia para mostrar-lhe os caminhos. Pôde ser observado também um papel corroído, destroçado, contendo fragmentos de discurso oportunista de político corrupto (amém!); uma das melhores oratórias da República Politiqueta, diziam. Havia, ainda, objetos do cotidiano. Muitos. Nenhum livro, porém. Cochicho não os dava importância. Percebi ao fundo vozes que cresciam em uníssono dizendo: não tens vez... não tens vez!!! Pôde-se ver, ao fechar das luzes (gotas!), o plim-plim eletrônico nacional, símbolo de sua pasteurização massificada.
Cansado, desisti finalmente de observar Zé Cochicho. Mais tarde comentaram que ele na morte mostrara-se feliz. Pasmada em seu rosto, a felicidade passara por ele sem parar e o fio de líquido amarelo fora o único troféu que ganhara da vida.


São Luís, 14 de julho de 1989.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns, Celijon
Belíssimo texto. Verve apurada de cronista, o fino da pena.
abs,
ricarte.